O CONGRESSO DE LAUSANNE
Desde o episódio
registrado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, os Concílios, Sínodos,
Convenções e Congressos, reunindo a liderança da Igreja para deliberar sobre
assuntos relevantes para o seu tempo, têm sido loci privilegiados da ação do Espírito
Santo, a orientar a caminhada do Povo da Segunda Aliança na História. Na Idade
Contemporânea, um desses encontros memoráveis foi, sem dúvida, o Congresso
Internacional para a Evangelização Mundial, que ocorreu na cidade de Lausanne,
na Suíça de 16 a 25 de julho de 1974, com cerca de 4.000 delegados,
observadores, imprensa e funcionários, oriundos de 151 países, dos mais
variados ramos reformados, sob o lema: “Que a Terra ouça a voz de Deus”. Uma
grande revista de circulação internacional denominou o Congresso de Lausanne de “O Vaticano II dos Evangélicos”.
Lausanne, mais do que um
evento, foi um processo, que teve início com o Congresso Internacional de
Evangelismo, em Berlim, 1966, com os Congressos Regionais, como o CLADE I, em
Bogotá, Colômbia, 1969 (de onde saiu a ideia da fundação da Fraternidade
Teológica Latino-Americana — FTL), e que prosseguiria com o trabalho da
Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE). Lausanne foi o grande
momento do Evangelicalismo, que traça as suas origens em John Wycliffe, na
pré-reforma, se organiza na Inglaterra em torno de 1850, e passa a ocupar um
lugar especial no contexto norte-americano, com aquelas lideranças
insatisfeitas com a polarização entre fundamentalismo e liberalismo nas
primeiras décadas do século XX, e que, depois da Segunda Guerra Mundial, vão
criar a Associação Nacional de Evangélicos e a revista Christianity
Today. Evangelicalismo como movimento credal, confessional, herdeiro
de elementos da Reforma, do Puritanismo, do Pietismo, do Movimento Missionário
do século XIX, com uma ênfase particular nas missões e na experiência de
conversão.
O Congresso de Lausanne
foi marcado pela riqueza de seu conteúdo, com exposições bíblicas, estudos
bíblicos, análises de conjuntura, reflexões teológicas, estudos regionais e
elaboração de estratégias missionárias, e uma riqueza de nomes (cerca de 250
oradores e painelistas), de Billy Graham a John Stott, de René
Padilla, Samuel Escobar e Orlando Costas a Samuel Kamaleson, Saphir Athial,
Gotrfried Osei-Mensah, Festo Kevengere, de Harold Lindsey, Ralph Winter e
Donald McGavran a Luis Palau e Francis Shaeffer, para nominar
apenas alguns. Do Brasil, falaram o pastor Nilson do Amaral Fanini e o autor
destas linhas.
O Congresso resultou em
um maior sentido de unidade entre os evangélicos, em um renovado compromisso
com a missão mundial da Igreja e uma internacionalização do envio e do
recebimento missionário.
2. A TEOLOGIA DE
LAUSANNE
Um intenso trabalho
antes e durante o Congresso resultou em um documento denominado de Pacto de
Lausanne. Este passou por um intenso processo de participação em sua redação,
subscrito pela maioria. Historiadores têm apontado o Pacto de Lausanne como um
dos três documentos doutrinários mais importantes da História da Igreja, ao
lado do Credo dos Apóstolos e da Confissão de Westminster. O reverendo
anglicano John Stott presidiu a comissão de redação. O Pacto consta de uma
Introdução e dos seguintes tópicos:
1. O propósito de Deus;
2. A autoridade e o poder da Bíblia;
3. A unicidade e a universalidade de Cristo;
4. A natureza da evangelização;
5. A responsabilidade social cristã;
6. A Igreja e a evangelização;
7. Cooperação na evangelização;
8. Esforço conjugado das Igrejas na evangelização;
9. Urgência na tarefa evangelística;
10. Evangelização e cultura. Educação e liderança;
11. Conflito espiritual;
12. Liberdade e perseguição;
13. O poder do Espírito Santo;
14. O retorno de Cristo, e uma
15. Conclusão;
A Teologia de Lausanne,
com sua abertura à contribuição das Ciências Sociais, e com a busca de resposta
a indagações do contexto, é a teologia do Evangelicalismo, também chamada em
círculos norte-americanos de “neo-evangelicalismo”, Evangelicalismo holístico
ou Missão Integral da Igreja, e em sua vertente mais avançada do Terceiro Mundo
de “Evangelicalismo progressista”. Daí, dois tópicos tiveram a maior
importância no Pacto de Lausanne: o da Responsabilidade Social e o da Cultura.
No primeiro, se afirma:
Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com
Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação,
afirmamos que a evangelização e o envolvimento sociopolítico são ambos parte do
nosso dever cristão... a salvação que alegamos possuir deve estar nos
transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A
fé sem obras é morta.
No período de 1974 a
1982, muitas vezes em parceria com a Comissão Teológica da Aliança Evangélica
Mundial (WEF), a Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial promoveu um
grande número de reuniões temáticas, com fecunda elaboração teológica.
Destacam-se entre elas os encontros sobre a Responsabilidade Social da Igreja,
sobre o Estilo de Vida Simples como Opção Cristã e sobre o Evangelho e a
Cultura. Conselhos Nacionais Evangélicos e entidades regionais de pensadores,
como a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) e os seus sucessivos
Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADE’s), Encontros e Seminários
(A Bíblia na América Latina, o Reino de Deus na América Latina, Os Evangélicos
e a Política, etc.), e os seus programas de publicações, marcaram uma época de
ouro no evangelicalismo mundial, mesmo sob o ataque dos extremos
fundamentalista e liberal e os desafios dos movimentos seculares.
3. LAUSANNE E A
CULTURA
O Pacto de Lausanne
reconhece a importância da variável cultural, mas afirma que:
A cultura deve ser sempre julgada e provada pelas Escrituras.
Porque o homem é criatura de Deus, parte da cultura é rica em beleza e em
bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo
pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de
uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério
de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em
todas as culturas.
Em janeiro de 1978,
tendo como moderador o reverendo John Stott, nos reunimos, 33 teólogos,
antropólogos, linguistas, missionários e pastores, em Willowbank, nas Ilhas
Bermudas, para uma consulta sobre “O Evangelho e a Cultura”. Ali, além da publicação dos textos
apresentados, produzimos um documento final denominado de “O
Relatório de Willowbank”, de ampla circulação.
O texto trata sobre os
seguintes itens:
1. Base bíblica da cultura;
2. Definição de cultura;
3. Cultura na revelação bíblica. A natureza da inspiração bíblica. Forma e significado. A natureza normativa da Escritura. O condicionamento cultural da Escritura. A obra contínua do Espírito Santo;
4. Compreendendo a Palavra de Deus Hoje. Abordagens tradicionais. Abordagem contextual. A comunidade do aprendizado. Os silêncios da Escritura;
5. Conteúdo e comunicação do Evangelho. A Bíblia e o Evangelho. O Cerne do Evangelho. Barreiras culturais à comunicação do Evangelho. Sensibilidade cultural na comunicação do Evangelho. Testemunho cristão no Mundo Islâmico. Expectativas de resultados;
6. Procuram-se: mensageiros humildes do Evangelho. Análise da humildade missionária. A encarnação como modelo do testemunho cristão;
7. Conversão e cultura. A natureza radical da conversão. O senhorio de Jesus Cristo. O convertido e sua cultura. O confronto de poder. Conversões individuais e em grupo. A conversão é súbita ou gradual?
8. Igreja e
cultura. Abordagens antigas e tradicionais. Modelo de equivalência dinâmica. A
liberdade da Igreja. A missão e as estruturas de poder. O risco do
provincianismo. O risco do sincretismo. A influência da Igreja sobre a cultura;
9. Cultura ética cristã e estilo de vida. Cristocentrismo e semelhança a Cristo. Padrões morais e práticas culturais. O processo de mudança cultural.
Em sua conclusão, o
“Relatório de Willowbank” afirma:
Nossa Consulta não
deixou nenhuma dúvida quanto à penetrante importância da cultura. A redação e
leitura da Bíblia, a apresentação do evangelho, a conversão, a igreja, a
conduta – tudo isso é influenciado pela cultura. É essencial, portanto, que
todas as igrejas contextualizem o Evangelho a fim de partilharem-no eficazmente
em sua própria cultura. Para essa tarefa de evangelização, todos nós conhecemos
a urgente necessidade do ministério do Espírito Santo. Ele é o Espírito da
verdade, que pode ensinar a toda a igreja como se relacionar com a cultura que
a envolve. Ele é também o Espírito do amor, e o amor é “a linguagem que toda
cultura humana compreende. Que o Senhor nos encha, pois, com seu Espírito!
Ao contrário de certas
tradições liberais, que buscavam, com uma pretensa objetividade, “desmitificar” a Bíblia,
estudá-la como um cadáver em uma mesa de legista, com uma leitura racionalista,
submetendo-a radicalmente às variáveis culturais, relativizando os seus ensinos
(ou, por outro lado, do literalismo estático dos fundamentalistas), os eruditos
evangélicos do movimento de Lausanne, embora peritos nas Ciências Sociais, se
aproximavam do texto da Escritura com respeito devido à Palavra de Deus,
buscando compreender os fatores culturais para melhor entender e seguir as
prescrições do texto, e, em um ato de espiritualidade e fé, apelando para a
iluminação do Espírito Santo. Foi essa motivação e essa abordagem que persegui,
com sinceridade e humildade, em meus próprios trabalhos sobre a
responsabilidade social e política da Igreja, e sobre a sexualidade, embora nem
sempre compreendido em um contexto polarizado.
4. MISSÃO E CULTURA:
TEXTO DE UMA COLETÂNEA
O acervo teológico do
Congresso de Lausanne, e dos seus desdobramentos, está muito bem representado
pelo novo livro publicado por Edições Vida Nova: Perspectivas no Movimento Cristão Mundial –
coletânea de textos de autores nacionais e estrangeiros explorando as
perspectivas bíblica, histórica, cultural e estratégica no Movimento de
Evangelização Mundial(São Paulo, 2009), tendo como editores: Ralph D. Winter,
Steven C Hawthorne e Kevin D. Bradford, com a colaboração de cerca de cem
autores nacionais e estrangeiros. Fiquei responsável pelo capítulo 69: “Missão
e cultura: pecado de conservadores e liberais” (p. 495-497).
Meu ponto de partida é a
encarnação de Jesus Cristo e sua plena humanidade, bem como a sua identificação
com a cultura do seu tempo e lugar, em tudo, menos no pecado. Destaco, também,
o judeu Pedro e o tricultural Paulo, e a simultaneidade entre expansão
missionária e inculturação. Os ramos da Igreja nos primeiros séculos revelam
suas inserções culturais: assírios, sírios, armênios, coptas, bizantinos,
eslavos e latinos. O mesmo acontecerá com a Reforma Protestante e sua inserção
na Inglaterra, na Alemanha e países escandinavos, na Suíça, Holanda e Escócia,
com faces culturais diferenciadas.
Aponto para a
escatologia, quando, na Nova Terra, estarão diante do Cordeiro uma diversidade
de tribos, povos, línguas e nações.
Aponto para a
necessidade de os cristãos brasileiros não romperem com a sua cultura nacional
e regional, e para a impossibilidade de se criar uma “cultura cristã
brasileira”. Expresso meu desconforto com a polarização contemporânea entre, de
um lado, os conservadores católico-romanos e protestantes que obedeceram à
Grande Comissão, porém, muitas vezes, misturando o Evangelho com as culturas
dos missionários, destruindo as culturas locais; e, do outro, liberais, que têm
denunciado a insensibilidade cultural e o etnicídio, mas, em seu universalismo,
associam qualquer evangelização com “imperialismo cultural”, desobedecem a
Grande Comissão, e pedem um fim das missões mundiais.
Reafirmo dois princípios
fundamentais:
1. O cristianismo é uma religião de destinação universal. Advogar o contrário seria negar a identidade da Igreja e a sua história;
2. Por ser uma religião universal, o cristianismo não pode ser identificado com nenhuma cultura, não podendo promover ou destruir culturas.
No texto, afirmo:
Os teólogos liberais ferem a teologia e a filosofia cristã ao
advogar o fim das missões e a ausência do pecado (“bons selvagens”) nas
culturas, movidos por um sentimento de culpa e por uma carência de fé. Os
teólogos conservadores ferem a História e a Antropologia com sua atitude
desrespeitosa.
Em termos éticos, os liberais negam a existência de valores revelados de validade universal, enquanto os conservadores atrelam valores a modelos, confundindo essência com acidente. Sendo os valores e princípios (ação do Espírito Santo) revelados, e os modelos, construções culturais e históricas, o equívoco dessa reiterada, insistente (e desastrosa) identificação terá de ser superado para que cesse o imperialismo cultural na tarefa evangelizadora.
Expresso minha
discordância com as expressões de isolacionismo cultural protestante, a
necessidade de pontes para a cultura e o papel transformador do Evangelho por
dentro da cultura, conscientes dos riscos do martírio no tencionar com aspectos
negativos da cultura, e para o fato de que as leituras sobre as culturas são
permeadas pelas ideologias, dentro do clássico princípio que “as ideologias dominantes são sempre as
ideologias das classes dominantes”, o que inclui a domesticação dos
cristãos pelo neo-hedonismo consumista e a cooptação pelos poderes políticos.
Dom. Robinson Cavalcanti
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